Sunday, February 27, 2005

Cartas sem destino

À janela chegava-me o som dos chocalhos das ovelhas. O vento sopra inconstante na direcção contrária a essa música bucólica. Do som nítido de uma paragem na corrente de ar passava a um vago rumor em luta contra a rajada para me chegar aos ouvidos. Estas variações de vento e som produzem uma música que me adormece os sentidos.
Fui entretanto tomando as doses de solidão que precisava e não precisava até estar precisamente só.
Prometi nesse dia nunca mais escrever cartas à menina que foge foge do carteiro com a gata ao colo.
O gato laranja fumava o último cigarro antes da caçada apesar dos seus conhecidos problemas para respirar.
A gata da menina liga as luzes dos olhos de caça.
Acendo um cigarro que lança um lenço lilás de fumo da sua ponta incendiada. Pedra preciosa.
Escrevo uma última carta, não para a menina que foge foge do carteiro, mas para a sua gata.
"Desconfiai do Outono em que as cores se modificam"- disse-me o gato laranja com um ar snob.
Recebi então uma carta da rapariga: as suas novas vestes, retiradas de um sonho acidental oferecido por um oráculo vago, faziam-na esquecer as antigas guerras!

Monday, February 21, 2005

Via agora a paisagem a povoar-se dos seres que havia imaginado e o meu inaginário a estender-se como paisagem.
O jardineiro cientista estudava o prazer provocado pelo cantar das aves, pela visão duma garça branca levantar voo entre as árvores e tantas outras coisas a que assistia diariamente no jardim laboratório, com a promessa de nunca revelar as suas descobertas.
Ao fim da tarde o Sol tecia teias de luz entre as oliveiras e depois enterrava o seu grande abdómem de aracnídeo na terra.
Ulisses tornado gigante caminhava ao fim da tarde pelo olival e tirava do seu saco estrelas com que semeava o céu.
Aborrecia-me pela tarde a moldar as nuvens e ainda me aborrecia mais quando não as tinha para moldar.
O cientista estava à beira duma improvável descoberta quando o rasto de fumo de um avião a jacto o fez cair no olvido.
Ulisses tropeçou num minúsculo torrão de terra, derramou as estrelas no céu que escapou assim à sua vontade: o céu tornou-se selvagem.
A paisagem escapava-se-me pelos dedos mais uma vez com a promessa de não mais se repetir, os seres imaginários fugiam de mim com ânsias de liberdade- nunca lhes a neguei.