Sunday, May 29, 2005

O Eco

Quando senti que o teu olhar sedutor ia voltar fechei os olhos. Senti a adversidade da palavra indisposta a ser escrita. A onda já me penetrara os olhos e quando voltei a abri-los devolvi-a em parte aos teus. A palavra já escrita era também uma adversidade: ali está ela, o que faz ela ali? Neste jogo de ecos sensuais deixamo-nos submergir pela maré dos sentidos.
O Eco sensual descrevia o arco do vermelho da cereja em queda. O prato de sobremesa. A árvore esperando a colheita dos seus frutos. Os frutos nos ramos mais altos anunciando a maturidade do texto tão difícil de colher.
A onda regressava na página seguinte do livro dos sentidos, era impossível não continuar a ler.

Tuesday, May 24, 2005

O esconderijo

A palavra era o ovo inoculado na mente pelo parasita Literatura. Crescia dentro da minha cabeça até ao momento da eclosão. Na eclosão a palavra fugia de mim, nem sempre com um sorriso.
O valor de troca das nossas palavras escondia-se emerso no teu sexo.
Vi-te suares as minhas letras pelos poros da pele . Coberta dessas novas palavras tinhas também um novo brilhar.
O plano era esse ovo extraído antes da eclosão e estudado pormenorizadamente. Custava-me ver a Palavra deste modo analisada, exposta a uma dissecação tão dolorosa. Magoava-me os tecidos das minhas ideias rasgados para que o ovo se extraísse.
Criei então uma palavra refúgio onde os ovos se podiam guardar em segurança. A Palavra é secreta.

Tuesday, May 17, 2005

Navegação inquietante

Navegas num mar em queda e as vertigens que tens são as de quem vive num caleidóscopio. Os fugazes reflexos doirados são a tentativa do Sol atingir o interior das tuas interiores grutas.
A enorme barreira vertical, aspergida por raios de pedras preciosas, rodopia e provoca o efeito desejado, desequilibrando o mundo, oferecendo novas órbitas, novos climas e mudando a atmosfera aleatoriamente.
Giram as auroras e os ocasos, espasmos de dias e noites. Ejaculas arco-íris que se vão juntando ao mar.
Navegas enquanto o mar cai, afundas-te nas vertigens, nadas no caleidóscopio, arco-íris diluem-se em grutas submarinas, espasmos e danças.

Wednesday, May 11, 2005

Sono inquietante

Levo a água à face e mudo de máscara.
Encho as mãos com o reflexo do firmamento: transformo-o e a mim mesmo.
A erva seca nas colinas dá-lhes um ar de animal adormecido. Não pisem o chão, não acordem as feras do mundo quando o seu sono é doce.
As mãos procuram mais uma vez a água, um céu alaranjado cobre-me a cara, um azul escuro e estrelado será o meu novo rosto.
Uma estrela cadente tenta fixar-se no meu olhar mas Vénus domina-me a retina com um sorriso duradoiro.
Numa das rotações da Terra sinto-me de pernas para o ar e viro-me para o espaço. As pegajosas estrelas colam-se-me ao cabelo, longos cometas passam-me entre os dedos. Almejo algo cujo o meu próprio pensamento não alcança e no esforço de o imaginar ramifico-me como uma árvore.
Nu acariciei o amansado monte. A seara seca tinha a cor da minha pele e quando me deitei desapareci.

Friday, May 06, 2005

Sentido II

Com fios doirados tento resgatar a luz da tua imagem sem sombras.
O cimo da noite obstina-se em se submergir numa fechada maré.
Como herança deixaste-me o caos que agora tento organizar em constelações.
O arco lácteo da nossa galáxia é levado à tensão por um titânico arqueiro.
Um minúsculo grão de areia é o eremitério de um microscópico asceta; todos os grãos de areia da praia repetem-no.
Na minha chegada aos sonhos deparei-me com uma corte deserta. Foi em vão que gritei aquele bando de pássaros. Levantaram voo roubando-me alguns cabelos com que construíram ninhos nas nuvens.
Num vidro vi deslumbrado uma aranha tentar caçar uma mosca que se encontrava na face oposta. Qual seria o sentido dessa caçada?