Tuesday, March 29, 2005

Fé automática

Ondeava o meu pensamento na algidez dos répteis e noutros seres pequenos lisos e redondos, ainda longe da forma final. Tentava orientá-los até à composição da sua completude e em vez disso era o meu modo de pensar que se transformava no processo.
Os lagartos entram no paraiso graças a uma fé automática. Apesar disso não devemos pensar que a sua natureza é simples.
Ainda que não tenha sido destruido estava tão afastado de todos os séculos sagrados.
Ainda que a morte seja uma jovem bela com um alvo cisne aos pés não deixa de ser eterna e com um poisar dos dedos nos lábios pode fazer todas as flores do campo secar.
De que me adiantou o esforço de guiar a vida nas palavras não escritas se o Sol as expôs a tão maior luz que a minha?
Os lagartos entram no paraiso graças a uma fé automática.
Moldava as mesmas matérias há tanto tempo e ainda nem vislumbrava o final. Deixei então de ser o guia e comecei a ser guiado.

Wednesday, March 23, 2005

Sobreposição

A boca abria-se para percorrer o beijo como uma vaga, fazendo estremecer o navio do corpo.
Saliva trocada nas mudanças de maré, o suor salgado e um mar vermelho ao pôr do Sol.
Quando desapareceste houve então uma aparição do escondido no desaparecido.
Interroguei-me sobre em que parte de ti escondias tantas sombras.
O céu estava repleto de grandes lagos de mercúrio e o vento tornava visivel o nu prateado das oliveiras. A Lua mantinha-se escondida mas, ainda assim, luminosa no seu luar.
Um gato com um rouxinol na boca: um silêncio atroz.
Olhei o céu e vi-o abrir-se num sorriso liquido.
O silêncio salta de ramo em ramo cantando a sua antiga ladainha.
A Lua espera a canção que não chegará e eu sopro sopro até encher as velas do barco da vida.
A espera é compensada quando já entrada a madrugada a melodia de novo começa a soar.

Thursday, March 17, 2005

Despertar

Acabado de sair do sono mas ainda ligado ao sonho balbuciava as primeiras notas dum novo despertar.
Agora que a mente se alumiou e os desejos purpurinos foram dispersos no meu interior deserto, agora que as fragas da minha garganta se aclararam numa voz dulcíficada, os penedos que havia em mim tornaram-se planície e o horizonte tornou-se-me maior.
Mel et lac sub lingua tua.
Há mel e leite debaixo da tua lingua.
A alma das flores do campo caminha a meu lado e do seu néctar tento haurir os mistérios daquela beleza ambigua.
Estaria nesse néctar a metapoesia que queria adoptar?
Há mel e leite debaixo da tua lingua.
Tento adivinhar a proporção de leite e mel e tremo de prazer sempre que me parece adivinhá-lo.
Já desperto sorrio ao poema que acabo de escrever.

Sunday, March 13, 2005

Naufrágios

O beijo navega corrente abaixo em direcção a um oceano cada vez mais distante. Farto desse afastar-se atiro uma pedra e vejo o beijo afundar-se.
No local do naufrágio aparece uma bóia a flutuar com a mensagem: " A paixão perdura." Mordes os lábios com raiva, aquela frase ficou imprimida no teu interior. A paixão perdura mas o beijo já se afundou.
Uma pedrada no barco do beijo do passado, uma pedrada no do beijo do presente e outra no do beijo do futuro. Não por esta ordem necessariamente.
As estrelas deixaram de lucir congeladas por tantos naufrágios.
Pensava qual deles me custava mais afundar. Enfiei a mão naquele lago estranho e recolhi as imagens confusas dum espelho quebrado.
Beijar era a solução.

Monday, March 07, 2005

O grande jogo

Serena e desperta descalçava-se para entrar no fresco da sombra.
Ao entrar na umbria entrava também no silêncio de prata que flutuava no éter.
O amor talvez fosse Orion a saltar à corda usando a via-láctea para o efeito numa noite de Inverno, em sintonia com o movimento de todos os outros astros, num grande jogo celeste.
Escutava o eco desses jogos trazidos da distância transformados numa música inclinada ao nada mas que, de alguma forma, me punha em sintonia com o mundo.
O silêncio toca o mais alto que pode a nota das sombras flutuantes. Toca-nos assim o olhar lançado às mentes.

Sunday, March 06, 2005

As ampulhetas doces

A estrela, talvez nascida de uma flor inconcreta, desenhava palavras que subiam ao céu e falavam com as constelações. Os deuses escutavam as reverberações dessas conversas celestes e adormeciam ao seu som com um sono perfeito.
Nas ampulhetas doces o tempo era açúcar e no seu passar cresciam rebuçados.
Por contraste o precipício sustinha o peso duma atmosfera plúmbea inibidora de sonhos.
Acusa assim o céu pelo transtorno do seu peso sobre a pequena cápsula geratriz: o precipício também quer ser céu e se a isso for obrigado crescerá até às alturas.
De volta sacudo-me e sou um pequeno sol com as suas diminutas erupções e abraço os seres ao meu redor.
O precipicio sorri aos astros recuperados ao seu equilibrio.
Na ampulheta doce, com tempo de açúcar, nascia uma estrela com ânsias de se juntar ao baile universal.

Thursday, March 03, 2005

Magia

Adormeces os negócios com os humanos deixando-os sonhar com o teu sono. Assim, diante da imagem das palavras secretas, tens a ilusão duma esferográfica a comandar a tua mão.
Sobredosagem de lírios, palavras dormideiras.
Num dos cruzamentos encontramo-nos como num nosso reflexo ao espelho. A tua boca era o litoral da minha lingua. Começava a seguir o rasto que me levaria à luminária doçura. Mamilo doce que lima o peito.
Habitados por navios em busca das palavras para novos poemas saímos nus dos corpos invisíveis, controlando o impulso de voltarmos ao físico fim das frases impossíveis.
Farol dos funâmbulos que dormem no ar.
Emersas no desconhecido as palavras escondem-se de mim.
Dentro dos meus labirintos navios em busca de amor fogem das vagas criadas pela tua visão.
Rebentam palavras dos mistérios que as tuas mãos acendem.
Enquanto lias estas palavras estavas já dentro do labirinto que criei.